Crescimento da busca por barcos no país durante a pandemia é acompanhado pelo avanço de comandantes que enfrentam sozinhas agruras da vida náutica
A desenhista industrial Patrícia Larica, que se mudou para um barco em 2019, navega em Angra dos Reis. Terra firme, só para fazer compras no supermercado e para passeios rápidos
Se o lugar das mulheres é onde elas quiserem, nada as impede de morar… em alto-mar. Há sete anos, a designer e terapeuta corporal Carina Seixas, de 39 anos, decidiu deixar seu apartamento de 30m², no Rio, para fazer de um veleiro de 35 pés (cerca de 3,2 m²) o seu lar. Nos últimos anos, o estilo de vida baseado no ditado “onde eu jogo a minha âncora é onde eu moro” tem incentivado cada vez mais mulheres a se tornarem marinheiras e donas de seus próprios barcos, muitas vezes sozinhas, como Carina.
A designer leva uma vida nômade entre as cidades de Angra dos Reis e Paraty, no estado do Rio, e Ilhabela, em São Paulo, desde quando percebeu que a vida acelerada e consumista da cidade não a agradava mais. Apaixonada pelo mar desde criança, por influência do pai, ela fez curso para se tornar mestre-amadora de veleiros e tem autorização para realizar navegações costeiras em seu barco, com capacidade para acomodar até quatro pessoas.
“Estava em uma fase de muita liberdade e quis me desafiar a viver com mais simplicidade e economia. Aluguei o meu apartamento, comprei o meu barco e hoje vivo navegando conforme as demandas de trabalho em cada cidade”, disse Carina, que oferece experiências a bordo exclusivamente para mulheres e já atendeu a mais de 30 delas através do projeto Voa Crioula: vela por mulheres.
Machismo a bordo
A vida da velejadora, no entanto, não é apenas de ventos e águas calmas. Além dos cuidados com a embarcação, ela precisa lidar com falas e atitudes machistas vindas de pessoas que duvidam da sua capacidade de conduzir uma embarcação. Um dos preconceitos disfarçados de superstições que se perpetua por dezenas de séculos é o de que mulheres dão azar durante as navegações porque, supostamente, tirariam a atenção dos homens.
“Eu me sinto respeitada no meio náutico, mas sempre procuram um homem para estar à minha frente. É chocante, mas aprendi a ignorar e hoje ofereço cursos a bordo e regatas (competições de vela) só para mulheres. Muitas têm embarcações por se inspirarem umas nas outras e verem que é possível ser mulher, consertar peças de barcos, mexer com elétrica e viver no mar”, afirma Carina, acrescentando que a questão racial é um preconceito que vem logo depois da misoginia.
Segundo informações da escola náutica CL Vela, desde 2018, a participação feminina nos cursos cresceu cerca de 10%. O dado chama atenção quando se avaliam os 30 anos de operação em que já se formaram mais de 25 mil velejadores, dos quais apenas 15% eram mulheres. Para Cíntia Knoth, fundadora da instituição, os Jogos Olímpicos e a presença feminina em clubes ajudam a formar grupos que se dedicam à náutica como hobby, mas também como ambiente doméstico.
“As mulheres velejam há décadas, mas antigamente essa prática era sob comando de homens. Hoje, isso mudou”, afirma Cíntia, que é velejadora e representou o Brasil nos Jogos Olímpicos de Seul, na Coreia do Sul, em 1988.
Vivências em alto-mar
A desenhista industrial Patrícia Larica, de 43 anos, se mudou para um veleiro sozinha em 2019, e agora só pisa em terra firme para ir ao supermercado, fazer passeios rápidos e visitar os parentes. Para sustentar o padrão de vida minimalista, ela carregou consigo apenas roupas leves, e todas as restantes deixou na casa da mãe. Com energia solar na embarcação e wi-fi à base do 4G, ela trabalha em home office e realiza as tarefas domésticas como em uma casa convencional.
“Para morar a bordo tem que gostar de adrenalina, pois estar no mar não é fácil. Meu dia é guiado pela natureza e pela meteorologia. Se chove e fico sem sinal, deixo para trabalhar outro dia. Isso também influencia no local onde vou ficar atracada por meses ou semanas. É preciso racionar comida e água, porque o veleiro só comporta 400 litros, que dura cerca de sete dias para o consumo de duas pessoas”, relata a velejadora.
Patrícia já navegou por toda a costa brasileira — de Florianópolis a Fernando de Noronha — e conheceu seu companheiro no oceano. Ao invés de juntarem as escovas, eles unificaram os barcos para vender experiências marítimas. Por semana, grupos de duas ou três pessoas se hospedam no veleiro de 32 pés do casal para uma aventura em alto-mar.
“’Cruzeirar’ é desafiador. Se quebra uma peça do navio temos que arrumar no meio da travessia. Nas navegações, eu divido o comando igualmente com o meu companheiro”, diz ela, enumerando tudo que tem no veleiro, cabine com banheiro, cama de casal e dois sofás, cozinha completa com forno, fogão, pia, e um balde para lavar roupa na mão.
Na última semana, o ciclone Yakecan, que atingiu fortemente o litoral Sul do país, e provocou reflexos no Rio de Janeiro e em São Paulo, preocupou Patrícia, mas ao mesmo tempo lhe proporcionou a chance de viver uma experiência única de velejar sob a influência de um fenômeno gigante.
Efeitos da pandemia
Dados da Associação Brasileira de Construtores de Barcos e Implementos (Acobar) apontam que o aumento da busca por barcos durante a pandemia pode ter influenciado a maior participação feminina no mercado, apesar de não haver informações separadas por gênero. No ano passado, 25 mil barcos foram registrados pela Marinha do Brasil, um crescimento de 26% em relação a 2020 e o maior dos últimos três anos. Entre os veleiros, os registros ativos em 2021 foram 63% maiores que os do ano anterior.
Os números superlativos são estimulados pela crescente busca por lazer e isolamento em família, de acordo com a Acobar. Por outro lado, a grande procura somada à inflação resultou no aumento exorbitante dos preços das embarcações. Patrícia, há cinco anos, pagou R$ 89 mil em seu barco, fabricado nos anos 1980. Hoje, o mesmo modelo está 200% mais caro. Um veleiro novo e importado, de 40 pés, custa em média R$ 2,3 milhões.
A paulista Luciana Vianna, de 54 anos, sócia da Ahola Náutica, distribuidora exclusiva no Brasil dos barcos franceses Beneteau, estava velejando quando explodiu a pandemia. De última hora, ela e o marido decidiram remanejar a viagem e ficar embarcados junto a um grupo de amigos em Paraty. Experiente em “cruzeirar” — já o faz há 24 anos —, ela lidou com contratempos estruturais da embarcação para sobreviver quase cinco meses no mar.
“Comecei a entender de vela na Europa, porque lá as mulheres são destaques na navegação. Todo aprendizado usamos para resolver os problemas. Na quarentena, tinha acabado de comprar o barco, que não tinha placa solar e as baterias não carregavam direito, mas deu tudo certo”, diz Luciana, que apesar dos problemas iniciais, curtiu ioga na ilha e ainda fugiu da Covid-19.
Atualmente, a empresária faz parte de um grupo de 200 navegadoras brasileiras que trocam experiências sobre o mar. Entre elas, há as que compõem a categoria arrais-amador (podem navegar por esporte ou cruzeiro em território nacional); a mestre-amador (para velejo costeiro); e a capitão-amador (permite navegar pelo oceano).